Apague suas fotos

Quando pensamos num artista criando, o que imaginamos? Geralmente, um espaço de trabalho cheio de ferramentas, material de referência, obras completas, incompletas, rascunhos… Sim, muitos rascunhos, estudos, esboços. Mas e na fotografia? Qual o lugar dos rascunhos e esboços?

O problema da fotografia é que não se pode fazer uma foto aos poucos. Antes de se apertar o botão, só se tem uma ideia, e depois, já a foto pronta. Não dá pra fotografar metade da foto e terminar depois. É impossível ir ajustando a cor do céu enquanto a máquina faz a captura. O fato é que na fotografia, um esboço inevitavelmente será uma foto pronta. Qual a diferença, então, entre o esboço e a obra finalizada? A diferença é que o esboço é a foto que você jogará fora.

Muitos criticam a fotografia digital por dizer que na “época do filme” se pensava mais, não se tiravam tantas fotos como se faz hoje. Mas isso acontecia porque cada foto gastava filme, requeria revelação, ampliação e tempo. Ou seja, dava trabalho. Hoje o resultado é instantâneo. É óbvio que, quando as circunstâncias mudam tanto, a maneira de fotografar também muda. Em relação aos esboços, o que se pode dizer é que antigamente o rascunho era mental: o fotógrafo passava mais tempo analisando cena, luz, ângulo, para só então tirar a foto. Além do custo, havia o risco de cometer um erro que só seria detectado com a foto revelada, quando poderia ser tarde demais. Hoje esse cuidado não é mais necessário. Pode-se fotografar, ver o resultado e fazer outra foto com as devidas alterações para obter o resultado que se tem em mente. Um método não é melhor do que o outro, eles são apenas decorrentes das circunstâncias distintas em torno do ato fotográfico.

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Ou seja, a fotografia digital permite que façamos rascunhos o tempo todo. O problema é o que já comentamos: o “rascunho” já é uma fotografia pronta e podemos não conseguri ver o rascunho como apenas um rascunho. Até porque quem decide o que é rascunho ou não é o próprio fotógrafo, ao ter em mente o que deseja e descartar aquilo que não é o resultado final. O fotógrafo que não consegue descartar suas fotos-rascunho sem piedade corre o risco de ser como aquela tia que aparece no almoço de domingo com um DVD com as 4000 fotos da sua última viagem, para desespero do resto da família.

A chave para fotografar bem é não ter dó de apagar suas fotos. Livros que trazem folhas de contato de fotógrafos consagrados mostram o nível de seleção que eles tinham com o próprio trabalho. Se no tempo do filme eram necessárias 100 fotos para conseguir uma realmente boa, hoje são necessárias 1000. O que significa que você deve enxergar as outras 999 como esboços que vão para a lata do lixo, do mesmo jeito que o desenhista descarta a maior parte do material que produz enquanto cria. Num mundo em que todo mundo fotografa tudo o tempo todo, aquilo que você não mostra pode contar muito mais do que aquilo que você mostra.

Se você olhar para uma foto e tiver dúvidas sobre se ela é boa, é porque não é. Se você achar que uma foto é boa, mesmo assim talvez ela não seja. Quando uma foto é boa você olha e pensa “essa é uma baita foto!”. E, a menos que essa seja sua impressão, não vale a pena manter – menos ainda mostrar – as suas fotos. Enxergue as fotos descartadas como um passo na jornada para as boas fotos, e não o destino. O destino é aquela foto arrebatadora que nos impressiona, nos comove. E, depois de cada uma dessas, começamos novamente a percorrer o caminho, que pode ser mais longo ou mais curto até mais uma foto significativa. As fotos intermediárias, que fazem parte dessa jornada, são muito importantes para você, mas não precisam ser guardadas: aquilo que elas ensinam fica marcado no seu cérebro, não no seu disco rígido. Apague-as sem medo e valorize apenas aquilo que de fato mostra a qualidade da sua fotografia; do contrário, sua produção corre o risco de se tornar banal, repetitiva e desinteressante.

Fotografia: um bloco de notas

Em um dos últimos textos, falei de como as fotografias, através do seu corte no tempo, atestavam a morte de um momento. Entretanto, e talvez pelos mesmos motivos, o ato de fotografar é um tributo ao momento presente. Existem poucas atividades que trazem tanto a nossa atenção ao instante imediato do que enquadrar uma cena através do visor de uma câmera. Nos instantes que precedem a tomada da foto, não há preocupações com o futuro ou o passado: desligamos, ainda que brevemente, nossa torrente de pensamentos que nos arrasta para longe do presente e focamos no aqui e no agora.

As filosofias orientais costumam ressaltar a importância de voltar-se para o momento presente. Estamos constantemente pensando, planejando, antecipando ou fazendo alguma coisa. Podemos passar dias, meses ou anos com nossas mentes ligadas nesses processos, sem nunca parar um momento e simplesmente viver o instante em que se está. Se pensarmos que na verdade não há passado ou futuro, é ainda mais estranho o quanto gastamos de tempo vivendo em função deles.


xiu×5

Fotografar, então, pode ter essa função. Não é possível fotografar o que já passou ou o que será. Somos obrigados a nos voltar para o que está acontecendo no momento, no lugar em que estamos. Temos que lidar com o que está disponível. É comum que depois de um tempo dedicando-se à fotografia como atividade de lazer ou profissão, passemos a olhar o mundo com um olhar diferente, enquadrando e compondo cenas que se formam na nossa frente. Talvez esse exercício também possa nos ajudar a retornar para o aqui e o agora mesmo quando não estamos com a câmera nas mãos.

Quando fotografamos, estamos criando, de certa forma, o enredo das nossas vidas, montado a partir dos milhares de momentos presentes que passamos. Mesmo quando estamos preocupados com questões técnicas, mesmo que estejamos fotografando num estúdio, por mais artificiais que possam parecer as situações, mesmo assim, fotografamos aquilo que vivemos, sempre. Algumas vezes, quando queremos fazer uma fotografia especial, tomamos cuidado com a técnica, gastamos tempo com o pós-processamento, estamos, metaforicamente, tentando escrever um pequeno conto, uma narrativa mais elaborada a partir daquilo que testemunhamos. Inversamente, quando sacamos o celular para uma foto rápida, estamos anotando um lembrete num bloco de notas. Mas, quer a foto seja uma narrativa elaborada, quer seja uma nota rápida, são igualmente relatos daquilo que vivemos.


Matea Jocic

Se abandonarmos por um momento todas as questões criativas, artísticas e estéticas envolvidas, focando apenas nessa característica da fotografia enquanto testemunho, relato ou demonstração de alguns de nossos momentos, torna-se difícil olhar as fotos de forma crítica. Todas elas são igualmente banais e igualmente significativas, independentemente de como foram feitas. Cada foto representa um instante de alguém. E somos bilhões de alguéns passando de um instante a outro constantemente. Como algo poderia ser mais comum? Por outro lado, não há nada além disso. Como algo, então, poderia ser mais sublime?

Tendemos a organizar tudo que percebemos de acordo com classificações, julgamentos, análises, aplicando constantemente um ou outro critério, um ou outro referencial. Será possível tomarmos as fotos – e talvez outras coisas – apenas como aquilo que são? Nada e tudo ao mesmo tempo?