Seja um amador

A ideia para este texto foi roubada inspirada no manifesto de CJ Chilvers por uma fotografia mais simples. Chilvers defende uma fotografia despojada, despreocupada com equipamentos e focada na criação. No seu manifesto, ele descreve dez “mandamentos” para uma forma de fotografar focada naquilo que realmente é importante: criar imagens significativas. Alguns pontos na sua lista são o estabelecimento de limitações próprias, investimento naquilo que melhora de fato a fotografia — como cursos, em vez de equipamentos, a importância de se contar uma boa história e evitar o excesso de pós-processamento.

Um dos pontos listados por Chilvers é particularmente interessante, e refere-se a não querer ser um fotógrafo profissional. Segundo ele (em tradução livre):

A fotografia é um dos hobbies mais populares no planeta, mas você nunca saberia disso lendo a maior parte dos blogs, podcasts, livros e tutoriais sobre fotografia. Ela é tratada como uma profissão, na qual o objetivo é ganhar dinheiro, comprar equipamentos mais caros ou expor suas cópias em galerias ao redor do mundo. Você é induzido a ser um profissional. Isso não é algo realista para a grande maioria dos fotógrafos. A maior parte dos fotógrafos se beneficiaria em ser amadora.

De fato, muitas publicações sobre fotografia, sejam elas revistas, blogs ou portais, estão constantemente buscando levar os leitores a consumir produtos — câmeras, lentes, livros, workshops — tendo como princípio a possibilidade de uma futura aplicação profissional desse consumo, cujo gasto é tratado como “investimento”. No entanto, apenas uma pequena parcela desses consumidores de fato é ou se tornará um profissional. Muitos equipamentos são empurrados para os compradores com base em especificações técnicas que são praticamente irrelevantes para a fotografia que fazemos na maior parte do tempo. Temos lentes ultranítidas mas apenas postamos fotos na web; câmeras que fotografam 5 quadros por segundo e apenas as usamos no modo de um quadro por vez; cartões de memória de infinitos gigabytes que nunca conseguimos encher. Qual o ponto de se ter mais do que se precisa? Esperamos que um dia vamos utilizar esses recursos — talvez no dia em que nos tornarmos profissionais — mas o fato é que esse dia nunca chega.


Jun Takeushi

Muitas pessoas de fato compram a ideia de se tornarem profissionais. Não se pode culpá-las: trabalhar com fotografia parece realmente tentador. Estar em eventos, conseguir acesso restrito, horário flexível, espaço para expressão artística etc. A realidade, no entanto, não é bem assim. O mercado está saturado, já que não é necessária nenhuma qualificação; apenas possuir e saber manejar um equipamento básico. Isso leva os valores pagos lá para baixo. Os fotógrafos que sobrevivem ganhando bem são aqueles que têm um trabalho diferenciado e sabem vender o seu peixe. A fotografia profissional é um campo no qual é difícil ingressar e se manter sem um bom planejamento.

Por que é tão difícil aceitarmos que a maioria de nós é e continuará sendo de fotógrafos amadores? Para mim, há duas razões principais: a primeira é que é mais fácil justificar os gastos que temos com equipamentos se acreditamos que um dia haverá algum retorno financeiro. Entretanto, acredito que a principal razão pela qual tentamos transformar a fotografia em algo que dê dinheiro é porque buscamos validação daquilo que fazemos, e o pagamento vem como validação. Sendo assim, procuramos vender nossas fotografias impressas, vender o nosso “olhar” fotografando um evento ou o nosso conhecimento ministrando workshops. Mas o fato é que essas formas de validação não são as únicas. Podemos ter outras formas de validação que não sejam financeiras, como o reconhecimento de amigos e familiares. Ou até mesmo a validação interna, através do prazer de fotografar ou da própria satisfação com o trabalho.

O problema de buscar a validação financeira externa é que ela aprisiona. Apenas uma pequena fração dos fotógrafos profissionais será contratada para trabalhar do seu jeito, com total liberdade. O resto terá que trabalhar em função daquilo que o cliente exige. Mesmo a validação externa não financeira — o elogio dos conhecidos, por exemplo — também pode restringir aquilo que fazemos. A única forma de se fotografar com total liberdade é fazendo isso apenas por si só. E, para isso, é preciso admitir que a fotografia é apenas uma atividade com fim em si mesma, que aquilo que gastamos com ela é gasto com lazer e assumir que se é apenas um fotógrafo amador.

Fotografia: processo e resultado

Fazer uma fotografia é um processo que se inicia com a concepção, por parte do autor, de um tema de interesse ou uma ideia visual – se fôssemos ser mais estritos, poderíamos dizer que o processo começa muito antes, mas para simplificar, vamos assumir esse ponto como o momento de partida. O processo se desenvolve através do contato do fotógrafo com o tema ou a situação que será o objeto da fotografia, a escolha de aspectos compositivos, os ajustes do equipamento, o clique da máquina, a edição da fotografia via software ou laboratório, a produção da cópia (impressa ou na tela) e a publicação, que a coloca em contato com os observadores.

Quando vemos uma fotografia, só vemos o resultado. Podemos inferir algumas etapas do processo, como a lente utilizada, a hora em que a foto foi feita ou o quanto o fotógrafo esteve próximo ou distante do assunto. Mas, como o que é de fato visto é o resultado, o ponto no qual convergem todas as escolhas das etapas anteriores, é a partir dele que a foto será julgada. Não importa se o fotógrafo ficou horas esperando uma determinada luz, se na hora do clique o assunto de mexeu: se a foto não corresponde às expectativas do observador, o processo não serve como desculpa.

Quando se é um fotógrafo profissional, não há como escapar: seu trabalho será julgado por esse resultado, que deve agradar ao cliente. Os aspectos do processo são irrelevantes, basta que eles levem à produção daquilo que é esperado. Não é à toa que muitos se preocupam com a confiabilidade dos equipamentos e dos locais, já que o cliente não quer saber se o cartão deu problema ou se a luz não era boa: o resultado precisa ser produzido não importa o que aconteça.


Bárbara, por Arthur Miranda

No entanto, quando se é um fotógrafo amador, o foco não precisa, necessariamente, estar no resultado. Muitas vezes as pessoas fotografam por causa do processo: pelo prazer de se envolver com um determinado assunto, por buscar uma boa luz, por tratar as imagens e até pela mera manipulação do equipamento. O amador pode escolher se vai se dedicar ou não ao resultado que cumpre as expectativas do observador ou se a fotografia tem sua “utilidade” no processo em si.

Ao entender a fotografia dessa forma, compreende-se porque muitas pessoas ainda usam filme, câmeras manuais ou revelam suas próprias fotos em casa. Pode haver uma diferença no resultado, mas ela não é tão grande a ponto de justificar o esforço que se tem quando compara-se com o sistema digital. O cerne da questão é que o processo é muito mais importante. Muitos fotógrafos consagrados gostavam de se trancar no laboratório por horas. O processo, nesses casos, se tornou mais importante do que o resultado. E aí está a diversão de ser um fotógrafo amador. Não há expectativas a cumprir, não há certo ou errado: pode-se fazer tudo do jeito que bem entender.

Fazer fotografias pode ser muito mais do que produzir imagens. Pode ser uma forma de relacionar-se com o mundo, de contemplar aquilo que está a nossa volta. Pode ser também uma espécie de retiro consigo mesmo, ao editar, tratar, imprimir as fotos no fim de um dia. Não é à toa que muitas pessoas veem a fotografia como uma forma de desconectar-se da rotina e do estresse. No entanto, para que seja possível aproveitar a fotografia enquanto processo, é preciso, ao menos até um certo ponto, abdicar dela enquanto resultado.