Publicidade: podem os fotógrafos lavar as mãos?

Não é difícil perceber que o preço que a sociedade de consumo cobra pelo conforto e pela tecnologia é alto demais. Podemos encarar essa questão de acordo com diversos pontos de vista. Em relação à ecologia, vemos que, embora os alertas em relação ao meio ambiente já estivessem sendo dados há muito tempo, só mais recentemente começamos a sentir as consequências. Há também um ponto de vista social, no qual argumenta-se que o modelo econômico baseado no consumo como é hoje acentua as diferenças entre as camadas da população. Do ponto de vista ideológico, afirma-se que o sistema capitalista, que tem o consumo como seu motor, impede que a democracia ou a igualdade sejam plenas.

Todos esses pontos de vista são válidos. No entanto, eu, como psicólogo, interesso-me por como os mecanismos da sociedade de consumo afetam a vida dos indivíduos e o seu bem estar. Hoje, não somos vistos como cidadãos, ou como indivíduos, e sim como consumidores. Se nos compararmos com as pessoas de dez, vinte ou cinquenta anos atrás, percebemos facilmente que consumimos muito mais. Os itens de consumo duram cada vez menos e são substituídos cada vez mais rapidamente. Isso é facilmente perceptível olhando para o intervalo entre os lançamentos entre câmeras dos principais fabricantes. As primeiras Nikon F ficaram em produção por 10 anos. Agora, vejamos quantos modelos são lançados em apenas um ano. A questão é: somos mais felizes do que a dez, vinte ou cinquenta anos?


Candice Wouters

Não somos, porque toda a questão do consumo depende disso. Se fôssemos mais felizes, consumiríamos menos, o que não pode acontecer. E qual o fator determinante para que não estejamos satisfeitos, tendo tanto conforto e tecnologia à disposição. Não quero ser reducionista, mas acredito que um dos fatores fundamentais é a publicidade. Basicamente, a publicidade, para atingir seus objetivos, precisa nos imbuir de uma sensação de falta, falta essa que só será suprida com um produto. Ou seja, os anúncios implicam o tempo todo no fato de que não podemos ser felizes, nem satisfeitos – a menos que consumamos. No entanto, se o consumo realmente fosse suficiente para nossa satisfação, não precisaríamos continuar consumindo tanto, e teríamos mais satisfação. Acontece que é muito difícil nos satisfazermos com posses materiais, inclusive porque a própria publicidade nos diz que o que acabamos de comprar já não é mais suficiente.

Quem trabalha com publicidade geralmente tem alguns argumentos contra essa percepção. Diz-se, por exemplo, que o marketing e os anúncios apenas refletem aquilo que o consumidor quer e que não se criam necessidades, apenas descobrem-se. No entanto, o que vemos na prática é diferente. As pessoas chegam a extremos para perseguir um padrão alardeado pela mídia que é simplesmente inatingível. Vejo também nos pacientes que atendo a angústia por não conseguir se encaixar em certos modelos midiáticos. Podemos perceber que a publicidade não está apenas nos anúncios, mas nas novelas, filmes, revistas e programas de TV em geral, constantemente criando modelos que as pessoas tendem a seguir. E não só as pessoas que não os atingem que sofrem. Nos raros casos em que as pessoas conseguem, por um momento, sentir-se dentro do padrão, isso também causa angústia e ansiedade tremendos, pois é dificílimo manter esse nível irreal de exigência. Basta ver quantas modelos são acometidas por transtornos alimentares. Então, quando os publicitários dão de ombros e negam ter todo esse poder sobre as pessoas, penso que é uma tremenda hipocrisia. Se não tivessem, não seriam gastos milhões e milhões em publicidade. Campanhas de marketing não raro custam mais caro do que os custos de produção de certos produtos: pagamos mais pelo anúncio do que pelo item em si.


Alex Glickman

Como esses modelos são basicamente visuais, a fotografia tem um papel importante. É através dela que se criam as ilusões dos produtos e vidas ideais que geram o consumo. No entanto, por que, ao fazer uma foto publicitária, não basta ir até o supermercado mais próximo e fotografar o produto? Por que é necessário ter estúdios com esquemas complexos de luz, flashes, lentes e câmeras caríssimas, pós-produção etc? Porque o produto real, que está na prateleira do supermercado, não é suficiente. É preciso ir além, criando uma imagem perfeita, ultrarreal, cuja função é eliciar o desejo e salientar a sensação de falta no observador.

Pode o fotógrafo lavar as mãos em relação à sua contribuição para esse sistema? É claro, ele irá argumentar que não foi ele que determinou que as coisas sejam como são, e que está apenas fazendo o seu trabalho. Ou, ainda, que se ele não fizer, outro fará. É claro que eu não tenho o direito de julgar a forma como as pessoas ganham suas vidas, ainda mais quando se trata de um trabalho honesto. Muitas vezes nem temos clareza das dimensões que a nossa atividade profissional pode atingir numa perspectiva mais ampla. Não obstante, acredito que existam algumas pessoas que têm uma visão crítica sobre o estado de coisas, sobre o modelo social em que vivemos. Que percebem, ainda, que podemos mudar muito pouco do sistema através do voto, já que os candidatos viáveis são aqueles comprometidos com o poder econômico e que a máquina governamental é desenhada para se limitar a escolhas menores. Para essas pessoas, talvez valha a pena refletir se adianta reclamar do governo ou culpar os outros. Uma das alternativas se dá através da análise do próprio meio de vida, considerando como ele afeta as pessoas e a si mesmo. E aí, se você for um fotógrafo publicitário e ao mesmo tempo alguém preocupado com as outras pessoas e com a sociedade de forma geral, talvez valha a pena parar para pensar. Você pode ter mais poder nas mãos do que imagina. O que você vai fazer com isso?

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P.S.2: Esse artigo foi inspirado no texto free of advertising, do blog mnmlist (em inglês).

5 comentários em “Publicidade: podem os fotógrafos lavar as mãos?”

  1. Acertadíssimo concluir levanto a lebra do poder, Rodrigo. Se

    “Quem trabalha com publicidade geralmente tem alguns argumentos contra essa percepção. Diz-se, por exemplo, que o marketing e os anúncios apenas refletem aquilo que o consumidor quer e que não se criam necessidades, apenas descobrem-se.”

    é porque essas pessoas se ignoram enquanto pessoas poderosas. Esse é o ponto.

    Abçs,
    João

  2. Assunto bastante interessante Rodrigo.
    Éo tipo de coisa que faz a gente pensar muito e, às vezes, ficar num beco sem saída…
    Essa questão da sociedade de consumo é mesmo contraditória.
    Quando uma forma de consumo se esgota, surge uma outra para tomar seu lugar. Entretanto, percebo que uma forma de consumo qua já não existe mais, ou que havia se encolhido, volta a ser usada com força (não sem uma ajudinha da publicidade como você citou).
    Percebo isto através do culto de certos equipamentos fotográficos que farão você “conseguir fotos iguais a de certos artistas” como ilusoriamente passa os marketeiros de produtos relacionados à lamografia.
    Nada contra aos referidos equipamentos, muito pelo contrário.
    Mas acho que não se deve cair na cilada do “ter” em detrimento do “ser”. No marketing da lamografia não se fala em desenvolver sua visão crítica ou em se criar seu estilo. Fala-se sim em se fotografar à rodo e sem planejamento. E de preferência comprando as máquinas e os filmes no site X. Enfim: compre nossas máquinas que elas vão te dar fotos iguais a dos artistas que aparecem no site.

  3. Rodrigo, ótimo artigo!
    Além de fotógrafa trabalho com a educação e esta é uma das grandes questões que estamos enfrentando com as crianças. O consumismo exagerado, a aceitação da sociedade com relação a isso e todo o discurso que é passado pelos meios de comunicação. Acredito que apesar de difícil não é impossível quebrar esse movimento. É uma questão de reeducação.

  4. João,

    Não sei se todos ignoram. Quando alguém nega ter um determinado poder, nem sempre é por desconhecimento. Muitas vezes é pelo medo da responsabilidade que acompanha esse poder.

    Silas,

    Toda campanha vende algum tipo de ilusão atrelada a um produto. Na fotografia, em que os equipamentos são tão valorizados, essa exploração do resultado em função do produto é explorada à exaustão. Cabe a nós a crítica.

    Carla,

    Concordo com você que a educação é um ponto chave na questão do excesso de consumo. Através do pensamento crítico, do acesso a diversas fontes de informação e da valorização de outros aspectos individuais e sociais que não estejam atrelados ao consumo é possível nos defender do bombardeio da mídia.

    Obrigado a todos pelos comentários!

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